Há
um trecho de uma das músicas de Raul Seixas que diz o seguinte: “O ser humano
virou carrasco e vítima do próprio mecanismo que ele criou”. A espécie
humana está na muito incômoda situação de realizar a autoescravização. De modo
geral, somos escravos de um sistema social que consegue, com um certo êxito,
determinar o que devemos pensar, o que não devemos pensar, o que
devemos fazer, o que não devemos fazer, etc.
Tornamo-nos,
mais ou menos, marionetes, e assim ficamos com pouca capacidade de interferir
de modo bem mais substancial no desenrolar da sociedade humana. Somos também
escravos das ideias, habilmente gravadas em nossos conjuntos de valores desde
criança, que não somos capazes de, sozinhos, libertar-nos de hábitos que nós já
percebemos com clareza que nos são muito nocivos, e também ao planeta. Penso
que a escravidão que os seres humanos impõem aos animais não humanos só vai poder acabar definitivamente quando
cada ser humano passar a agir com suficiente autonomia, pondo fim a essa sutil
e avassaladora autoescravização da espécie humana.
No entanto, há outros fatores preponderantes que
respondem pela perpetuação da ideia que os animais nascem para servir à
humanidade, sem nenhum limite ético considerável para tal prática insana. A
grande maioria das pessoas é bem sensível ao sofrimento que são obrigados a
suportar burros e cavalos que trabalham como escravos tracionando
carroças, e dos bois durante as abomináveis vaquejadas, por exemplo; porém,
quase todas essas pessoas não se levantam para dar um basta a tais práticas
diabólicas. Mas como fazer isso se desde criança é habilmente gravado em seu
conjunto de valores a ideia que animal não humano nasce para servir à
humanidade, usando um veículo de fundo religioso para isso. O bem respeitado
teólogo católico Thomas de Aquino, que viveu no século XVII ousou escrever e
divulgar publicamente: “(...)os animais são para uso do homem; também, sem
nenhum prejuízo, este pode servir-se deles, seja matando-os, seja de qualquer
outro modo”. Infelizmente, essas propostas muito indecentes eram práticas
comuns entre os padres da Europa da idade média, por exemplo. A teia social
brasileira foi tecida, durante vários séculos, baseando-se em tais ensinamentos, que vinham com uma roupagem divina para
poder ter a devida credibilidade junto à população. Dessa forma, a pessoa para
dizer não à escravidão animal, teria que se chocar com ideias que estão
arraigadas em seu conjunto de valores, e que têm uma roupagem divina, e
contestar um ensinamento divino parece ser uma idiotice; porém é
perfeitamente plausível pôr em dúvida que a fonte do ensinamento seja divina, e
para tanto é necessário mais autonomia, e mais coragem de cada pessoa para
libertar-se da ideia que o ser humano tem o direito de torturar animais não
humanos, inclusive no entretenimento humano.
Durante
a idade média, na Europa, os bispos católicos pregavam que o sol girava em
torno da Terra, pois entendiam que esse era um ensinamento divino, ou queriam
dar a entender à população que pensavam assim; porém, pouco a pouco, nas
décadas seguintes, esse ensinamento teve que deixar de ser divino, pois foi ficando
bem evidente que era uma grande mentira, e a igreja católica teve que mudar de
posição porque quase toda a população percebeu que era bem mais aceitável as explicações dos especialistas da época em
detrimento das explicações dos bispos. Os ensinamentos religiosos não são
estáticos, eles podem mudar, mas para tanto é necessário que haja uma certa
revolução no comportamento das pessoas envolvidas diretamente com uma
determinada religião. As religiões que apoiam substancialmente a ideia que os
animais nascem para servir à humanidade serão cada vez mais pressionadas a
defender a ideia oposta se cada vez mais pessoas acordarem desse pesadelo, e
decidirem dar um basta à ideia do animal-objeto a serviço do ser
humano.
Os
animais nascem livres, porém os seres humanos privam bilhões de animais todos
os anos desse precioso bem natural, entendendo que dispõem de uma espécie de
permissão divina; temo só de pensar se os seres humanos entendessem ter
recebido uma espécie de permissão diabólica para lidar com os outros animais.
Por.: Andrade Bezerra
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