quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Esmola e Caridade

Escusam-se muitos de
 não poderem ser caridosos,
alegando precariedade de bens,
 como se a caridade se
reduzisse a dar de comer
aos famintos,
dar de beber aos sedentos,
 vestir os nus e proporcionar
um teto aos desabrigados.
Além dessa caridade,
de ordem material,
outra existe - a moral,
que não implica o
gasto de um centavo sequer e,
não obstante,
é a mais difícil de ser praticada.
Exemplos? Eis alguns:
Seríamos caridosos se,
fazendo bom uso de nossas
forças mentais, vibrássemos ou orássemos
diariamente em favor
de quantos saibamos acharem-se
enfermos,
tristes ou oprimidos,
sem excluir aqueles
 que porventura se
considerem nossos inimigos.

Seríamos caridosos se, em
determinadas situações,
nos fizéssemos intencionalmente
 cegos para não vermos o
sorriso desdenhoso ou o
gesto disprezivo de
 quem se julgue superior a nós.

Seríamos caridosos se,
com sacrifício de nosso
valioso tempo,
fôssemos capazes de ouvir,
 sem enfado, o infeliz
que nos deseja confiar
 seus problemas íntimos,
embora sabendo
de antemão nada podermos
 fazer por ele, senão
 dirigir-lhe algumas
 palavras de carinho e
 solidariedade.

Seríamos caridosos se,
ao revés,
soubéssemos fazer-nos
momentâneamente
surdos quando alguém,
habituado a escarnecer
 de tudo e de todos, nos
atingisse com expressões
irônicas ou zombeteiras.
Seríamos caridosos se,
 disciplinando nossa
 língua, só nos referíssemos
ao que existe de bom nos seres
e nas coisas, jamais passando
adiante notícias que, mesmo
sendo verdadeiras, só sirvam
 para conspurcar a honra ou
abalar a reputação alheia.
Seríamos caridosos se,
embora as circunstâncias
 a tal nos induzissem, não
 suspeitássemos mal de
nossos semelhantes,
abstendo-nos de expender
qualquer juízo apressado e
 temerário contra eles, mesmo
 entre os familiares.
Seríamos caridosos se,
percebendo em nosso irmão um
intento maligno, o
 aconselhassemos
 a tempo, mostrando-lhe o erro
e despersuadindo o de o levar a
 efeito.
Seríamos caridosos se,
 privando-nos, de vez em
 quando, do prazer de um
 programa radiofônico ou
de T.V. de nosso agrado,
visitássemos pessoalmente
aqueles que, em leitos
 hospitalares ou de sua
residência, curtem
 prolongada doença
e anseiam por um pouco
 de atenção e afeto.
Seríamos caridosos se,

embora essa atitude pudesse
 prejudicar nosso interesse pessoal,
tomássemos, sempre, a defesa do
fraco e do pobre, contra a
 prepotência do forte e a
usura do rico.
Seríamos caridosos se,
mantendo permanentemente
uma norma de proceder sereno
 e otimista, procurássemos
criar em torno de nós uma
atmosfera de paz, tranquilidade
e bom humor.
Seríamos caridosos se,
vez por outra,
endereçássemos uma palavra
de aplauso e de estimulo às
 boas causas e não procurássemos,
ao contrário, matar a fé
e o entusiasmo daqueles
 que nelas se acham empenhados.

Seríamos caridosos se deixássemos
de postular qualquer
 benefício ou vantagem,
desde que verificássemos
 haver outros direitos mais
 legítimos a serem atendidos
 em primeiro lugar.

Seríamos caridosos se,
vendo triunfar aqueles
 cujos méritos sejam
 inferiores aos nossos,
 não os invejássemos
e nem lhes desejássemos
mal.

Seríamos caridosos se
não desdenhássemos
 nem evitássemos os de
 má vida, se não temêssemos
 os salpicos de lama que os
cobrem e lhes estendêssemos
 a nossa mão amiga,
ajudando-os a levantar-se
e limpar-se.

Seríamos caridosos se,
 possuindo alguma parcela
 de poder, não nos
deixássemos tomar
pela soberba, tratando,
 os pequeninos de condição,
 sempre com doçura e urbanidade,
 ou, em situação inversa,
soubéssemos tolerar,
sem ódio, as impertinências
 daqueles que ocupam
melhores postos na
aisagem social.

Seríamos caridosos se,
 por sermos mais inteligentes,
não nos irritássemos com
 a inépcia daqueles que
nos cercam ou nos servem.

Seríamos caridosos se
 não guardássemos
 ressentimento daqueles
 que nos ofenderam ou
 prejudicaram, que feriram
 o nosso orgulho ou roubaram
a nossa felicidade,
perdoando-lhes
de coração.

Seríamos caridosos se
reservássemos nosso
rigor apenas para nós
 mesmos, sendo
pacientes e tolerantes
 com as fraquezas e
imperfeições daqueles
com os quais convivemos,
no lar, na oficina de
 trabalho ou
 na sociedade.

E assim,
dezenas ou
 centenas de outras
circunstâncias poderiam
 ainda ser lembradas,
em que, uma amizade
sincera, um gesto
fraterno ou uma simples
 demonstração de
simpatia, seriam
expressões inequívocas
 da maior de
 todas as
virtudes.

Nós, porém,
 quase não nos
apercebemos dessas
 oportunidades que se
 nos apresentam,
 a todo instante, para
 fazermos a caridade.
Porquê?
É porque esse tipo
de caridade não transpõe
as fronteiras de nosso
mundo interior,
não transparece,
não chama a atenção,
nem provoca glorificações.
Nós traímos,
empregamos a violência,
 tratamos ou outros com leviandade,
 desconfiamos,
 fazemos comentários de má fé,
 compartilhamos do
erro e da fraude,
mostramo-nos intolerantes,
 alimentamos ódios,
praticamos vinganças,
fomentamos intrigas,
espalhamos inquietações,
desencorajamos iniciativas nobres,
 regozijamo-nos com a impostura,
 prejudicamos interesses alheios,
 exploramos os nossos semelhantes,
 tiranizamos subalternos e familiares,
desperdiçamos fortunas
no vício e no luxo,
transgredimos, enfim,
todos os preceitos da Caridade,
 e, quando cedemos
 algumas migalhas do
 que nos sobra ou prestamos
 algum serviço, raras vezes
agimos sob a inspiração do
 amor ao próximo, via de regra
 fazemo-lo por mera ostentação,
 ou por amor a nós mesmos,
isto é, tendo em mira o
 recebimento de recompensas
 celestiais.
Quão longe estamos
de possuir a verdadeira caridade!
egoístas e miseravelmente
desprovidas de espírito
 de renúncia para praticá-la.

Mister se faz, porém,
 que a exercitemos, que
aprendamos a dar ou sacrificar
 algo de nós mesmos em
benefício de nossos
 semelhantes, porque
"a caridade é o cumprimento
 da Lei."

Fonte: Calligaris, Rodolfo. Da obra: As Leis Morais.
8a edição. Rio de Janeiro, RJ:FEB, 1998.
Josephine Wall

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