Francisco Cândido Xavier
Pede-me você notícias do cemitério nas comemorações de Finados. E como tenho em
mãos a carta de um amigo, hoje na Espiritualidade, endereçada a outro amigo que
ainda se encontra na Terra, acerca do assunto, dou-lhe a conhecer, com
permissão dele, a missiva que transcrevo, sem qualquer referência a nomes, para
deixar-lhe a beleza livre das notas pessoais.
Eis
o texto em sua feição pura e simples:
Meu
caro, você não pode imaginar o que seja entregar à terra a carcaça hirta no dia
dois de Novembro.
Verdadeira
tragédia para o morto inexperiente.
Lembrar-se-á
você de que o enterro de meu velho corpo, corroído pela doença, realizou-se ao
crepúsculo, quando a necrópole enfeitada parecia uma casa em festa.
Achava-me
tristemente instalado no coche fúnebre, montando guarda aos meus restos,
refletindo na miserabilidade da vida humana...
Contemplando de longe minha mulher e meus filhos, que choravam discretamente
num largo automóvel de aluguel, meditava naquele antigo apontamento de Salomão
– vaidade das vaidades, tudo é vaidade –, quando, à entrada do cemitério, fui
desalojado de improviso.
Na
multidão irrequieta dos vivos na carne, vinha a massa enorme dos vivos de outra
natureza. Eram desencarnados às centenas, que me apalpavam curiosos, entre o
sarcasmo e a comiseração.
Alguns
me dirigiam indagações indiscretas, enquanto outros me deploravam a sorte.
Com
muita dificuldade, segui o ataúde que me transportava o esqueleto imóvel e, em
vão, tentei conchegar-me à esposa em lágrimas.
Mal pude ouvir a prece que alguns amigos me consagravam, porque, de repente, a
onda tumultuária me arrebatou ao circulo mais íntimo.
Debalde
procurei regressar à quadra humilde em que me situaram a sombra do que eu fora
no mundo... Os visitantes terrestres daquela mansão, pertencente aos supostos
finados, traziam consigo imensa turba de almas sofredoras e revoltadas,
perfeitamente jungidas a eles mesmos.
Muitos desses Espíritos, agrilhoados aos nossos companheiros humanos, gritavam
ao pé das tumbas, contando os crimes ocultos que os haviam arremessado à vala
escura da morte, outros traziam nas mãos documentos acusadores, clamando contra
a insânia de parentes ou contra a venalidade de tribunais que lhes haviam
alterado as disposições e desejos.
Pais bradavam contra os filhos. Filhos protestavam contra os pais.
Muitas
almas, principalmente aquelas cujos despojos se localizam nos túmulos de alto
preço, penetravam a intimidade do sepulcro e, de lá, desferiam gemidos e
soluços aterradores, buscando inutilmente levantar os próprios ossos, no
intuito de proclamar aos entes queridos verdades que o tímpano humano detesta
ouvir".
Muita gente desencarnada falava acerca de títulos e depósitos financeiros
perdidos nos bancos, de terras desaproveitadas, de casas esquecidas, de objetos
de valor e obras de arte que lhes haviam escapado às mãos, agora vazias e
sequiosas de posse material.
Mulheres desgrenhadas clamavam vingança contra homens cruéis, e homens
carrancudos e inquietos vociferavam contra mulheres insensatas e delinquentes.
Talvez
porque ainda trouxesse comigo o cheiro do corpo físico, muitos me tinham por
vivo ainda na Terra, capaz de auxiliá-los na solução dos problemas que lhes
escaldavam a mente, e despejavam sobre mim alegações e queixas, libelos e
testemunhos.
Observei
que os médicos, os padres e os juízes são as pessoas mais discutidas e
criticadas aqui, em razão dos votos e promessas, socorros e testamentos, nos
quais nem sempre corresponderam à expectativa dos trespassados.
Em muitas ocasiões, ouvi de amigos espíritas a afirmação de que há sempre
muitos mortos obsidiando os vivos, mas, registrando biografias e narrações,
escutando choro e praga, tanto quanto vendo o retrato real de muitos, creio
hoje que há mais vivos flagelando os mortos, algemando-os aos desvarios e
paixões da carne, pelo menosprezo com que lhes tratam a memória e pela
hipocrisia com que lhes visitam as sepulturas.
Tamanhos foram meus obstáculos, que não mais consegui rever os familiares naquelas horas solenes para a minha incerteza de recém-vindo, e, somente quando os homens e as mulheres, quase todos protocolares e indiferentes, se retiraram, é que as almas terrivelmente atormentadas e infelizes esvaziaram o recinto, deixando na retaguarda tão somente nós outros, os libertos em dificuldade pacífica, e fazendo-me perceber que o tumulto no lar dos mortos era uma simples consequência da perturbação reinante no lar dos vivos.
Tamanhos foram meus obstáculos, que não mais consegui rever os familiares naquelas horas solenes para a minha incerteza de recém-vindo, e, somente quando os homens e as mulheres, quase todos protocolares e indiferentes, se retiraram, é que as almas terrivelmente atormentadas e infelizes esvaziaram o recinto, deixando na retaguarda tão somente nós outros, os libertos em dificuldade pacífica, e fazendo-me perceber que o tumulto no lar dos mortos era uma simples consequência da perturbação reinante no lar dos vivos.
Apaziguado o ambiente, o cemitério pareceu-me um ninho claro e acolhedor, em
que me não faltaram braços amigos, respondendo-me às súplicas, e a cidade, em
torno, figurou-se-me, então, vasta necrópole, povoada de mausoléus e de cruzes,
nos quais os espíritos encarnados e desencarnados vivem o angustioso drama da
morte moral, em pavorosos compromissos da sombra.
Como vê, enquanto a Humanidade não se habilitar para o respeito à vida eterna,
é muito desagradável embarcar da Terra para o Além, no dia dedicado por ela ao
culto dos mortos que lhe são simpáticos e antipáticos.
Peça a Jesus, desse modo, para que você não venha para cá, num dia dois de
Novembro. Qualquer outra data pode ser útil e valiosa, desde que se desagarre
daí, naturalmente, sem qualquer insulto à Lei. Rogue também ao Senhor que, se
possível, possa você viajar ao nosso encontro, num dia nublado e chuvoso,
porque, em se tratando de sua paz, quanto mais reduzido o séquito no enterro
será melhor.
E porque o documento não relaciona outros informes, por minha vez termino
também aqui, sem qualquer comentário.
CARTA DE UM MORTO
LIVRO: CARTAS E CRÔNICAS
IRMÃO X E FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
O
Hospital Espiritual do Mundo
agradece os irmãos do SITE AUXILIO FRATERNIDADE, pelo artigo que
engrandeceu este espaço de aprendizagem e encontros Sagrados.
Se deseja compartilhar e divulgar
estas
informações, reproduza a integralidade do texto e cite o autor e a fonte.
Obrigada. Hospital
Espiritual do MundoNOTA.: As imagens usadas neste site foram tiradas da net sem autoria das mesmas. Caso alguém conheça o autor das imagens, agradeceremos se nos for comunicado, para que possamos conferir os devidos créditos. Grata, Esperança.
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